Breve história da música no (vale do) Acre
As
ultimas décadas do século passado e o despontar do século XX,
encontraram uma região da Amazônia, que tornou-se conhecida como Acre,
cujo universo cultural, assim como o econômico, girava em torno dos
seringais. Um modo de vida original em sua organização, cotidiano e
relações foi criado naqueles anos em que milhares de homens chegaram
pelos rios, vindos de diversas partes do Brasil, e do mundo, para tentar
a sorte na extração da borracha. Os povos indígenas acuados por aquela
invasão arrebatadora, ora resistiam, ora colaboravam, buscando
mecanismos de sobrevivência étnica e individual.
Um
mundo tenso onde as raças encontravam-se, as nacionalidades chocavam-se
e as culturas mesclavam-se. Um mundo novo, onde os homens passavam
semanas a fio isolados em meio à floresta gigantesca e inesgotável,
vencendo a dureza do trabalho, a umidade do ambiente, a ameaça do
impaludismo, em nome do sonho de uma vida pródiga.
Mas
nem só de sacrifícios podiam viver os homens e era preciso esquecer um
pouco a batalha diária, como era preciso lembrar a doçura da terra
natal, dos parentes distantes e das mulheres amadas que os esperavam na
volta para casa. Por isso o seringal criou suas próprias possibilidades
de festejar, cantar, dançar e lembrar o que existia de belo no passado e
no futuro de cada um. A casa de algum seringueiro ou o barracão do
abastado e poderoso seringalista, eram assim transformados regularmente
em lugar de encontro e por consequência de musica. As festas nos dias
santos, nos dias da pátria, nos dias de aniversário do pessoal do
barracão, na chegada de visitantes importantes pelos vapores, tudo
servia de motivo para a comemoração. Os bailes deveriam então tirar o
atraso em que homens e mulheres encontravam-se depois de meses sem uma
folguinha para distrair o pensamento. Por isso tornou-se tradicional que
as festas, ou bailes (se realizados na casa do patrão), durassem a
noite inteira, até que o amanhecer de domingo viesse decretar o
necessário descanso para a luta a ser reiniciada na segunda-feira.
O
único registro possível dessas antigas festas seringueiras nos ficou
pelas páginas dos romances de José Potyguara, Océlio de Medeiros,
Ferreira de Castro e quantos outros pintaram as cores da ficção-real
daqueles anos longínquos em que a riqueza da borracha era tanta que
chegou a ganhar o apelido de ouro negro (em razão da cor escura das
pelas de borracha defumadas).
Porém, para além
dos possíveis registros escritos ou gravados, permaneceu registrado,
principalmente, aquele modo de vida criado nos seringais. Modo de vida
tradicional e pouco alterado a ponto de ainda hoje possuir algumas de
suas antigas características. Quem anda pelo interior acreano não deve,
portanto, surpreender-se ao encontrar com patrões e regatões que aviam
mercadorias por preços exorbitantes e com seringueiros que ainda dividem
seu tempo entre a borracha, a pequena roça e a caça para a mistura das
refeições. Tão pouco pode surpreender aos desavisados o costume dos
forrós de final de semana, por ocasião dos dias especiais, tocados pelas
sanfonas, ou pelas violas, ou pelas rabecas, ou pelas zabumbas
(dificilmente por todos juntos), até o dia amanhecer.
Já
as cidades das três ultimas décadas do século passado nem podiam ser
chamadas assim. Eram, na verdade, povoados com meia dúzia de casas
alinhadas a margem dos rios, onde realizava-se o comércio e o
abastecimento de embarcações em viagem. Essa característica comercial
implicava naturalmente na diversidade dos produtos oferecidos à
freguesia e o lazer aparecia como um desses produtos a ser oferecido aos
consumidores esporádicos ou regulares dos povoados. Criou-se assim um
modo de vida divergente daquele do seringal e que lhe servia como
complemento e/ou oposição. Se os seringais eram o local da dispersão dos
homens e do trabalho, os povoados eram o lugar da concentração e do
lazer, onde podia-se gastar o dinheiro tão duramente obtido na faina da
borracha.
O período da entre-safra anual da
seringa, que coincidia com as cheias do rio e a consequente invasão dos
vapores trazendo gentes e novidades, era a época em que os povoados
tornavam-se ainda mais movimentados e importantes. Aqui a musica de
salão predominava - com suas valsas, polcas, mazurcas e lundus - mas sem
as restrições impostas pelo trabalho nos seringais. As casas onde o
jogo rolava solto e onde os seringueiros em atraso podiam visitar
mulheres especialmente trazidas de Manaus e Belém (o que incluía algumas
européias), invariavelmente eram também os salões onde a musica e a
dança reuniam homens e mulheres dos mais variados interesses e atitudes.
Mas
o primeiro registro realmente documental que pudemos encontrar diz
respeito àquela musica presente nos dias das revoluções acreanas, quando
a musica tornara-se menos lazer e mais reafirmação do poder ou da
identidade. Data dessa época a história da musica emblemática do Acre,
que nem era musica ainda, mas uma poesia do soldado-médico-poeta Dr.
Francisco Mangabeira que em um momento de descanso, nas trincheiras da
Revolução, escreveu os versos que anos mais tarde seria musicado por
Mozart Donizeti e tornaria-se o hino acreano.
É
desse período também a foto dos batalhões acreanos em marcha pela
floresta com parte de seus soldados carregando instrumentos musicais,
além das armas, demonstrando que a musica era então, como todo o resto,
guerra.
Aliás, um dos episódios mais
interessantes da Revolução Acreana não é a história de um combate, mas
de um pequeno acontecimento entre as renhidas lutas que travavam-se em
Porto Acre. Foi quando brasileiros e bolivianos em trincheiras opostas
juntaram-se por alguns minutos unidos pelo som tirado de uma flauta.
Esse episódio, com toda sua simplicidade, tornou-se um dos eventos mais
memoráveis daquela época, reafirmando a capacidade exclusiva da musica
de unir aos contrários mesmo que durante o mais intenso confronto.
O
fim da guerra e o retorno ao cotidiano de trabalho e prosperidade
renovou a distinção entre os seringais e as cidades, agora com uma
importância e concentração populacional considerável por parte das
ultimas. Dois mundos mais distintos ainda devido ao caráter
metropolizante e burguês que caracterizava as cidades do inicio do
século, assimilando as influencias da “Belle Epóque” européia, com seus
maneirismos, modas e forte elitização da sociedade.
Mas
os modos de vida do seringal e da cidade ainda que diversos não podiam
ser excludentes, já que só existiam em mútua relação. Através da
complementação funcional entre os seringais e as cidades de então, as
diferentes tendências reuniam-se sob uma mesma identidade cultural. É
evidente que em uma relação desse tipo as cidades, por menores que
fossem, com sua vocação para o comércio do lazer e do prazer, acabaram
exercendo acentuada influencia musical sobre os seringais.
Ou
seja, na medida em que as cidades acreanas consolidavam-se, aumentavam
as influencias exercidas por outros núcleos urbanos, especialmente
Manaus, Belém e Rio de Janeiro (então capital da Republica), que
possuíam ligações diretas e permanentes com o Acre. Estas cidades vinham
assumindo ares de metrópoles em seu processo urbanístico e impunham,
por conseguinte, a presença de uma cultura e musica tidas como eruditas.
O resultado disso é que a musica podia ser encontrada nas casas das
famílias mais abonadas das cidades acreanas (estendendo-se aos
principais seringais) que exibiam pianos trazidos com grande dificuldade
e custo pelos vapores da rota dos altos rios. Mais amplamente ainda, os
modismos burgueses da “Belle Epóque” eram seguidos nas reuniões sociais
realizadas entre essas mesmas famílias da elite acreana.
Mas
também havia nas cidades uma forte, por vezes até maior, presença de
uma musica mais popular, afeita aos bares, cassinos e casas de
prostituição, instituições importantes que eram no relacionamento
seringal-cidade da época. Nestes locais, era possível encontrar musicas
de salão de origem européia, como valsas, scotichs, operetas e polcas,
misturadas aos ritmos e musicas brasileiras do início do século tiradas
nas violas, ou qualquer outro instrumento que estivesse à mão. As
camadas populares apropriavam-se assim das linguagens e recursos da
elite para tornar seu próprio universo mais atraente e desejável,
provocando a reação inversa por parte das elites que também acabavam
adotando gostos e comportamentos da população em geral.
A
tensão resultante desse confronto dissimulado entre uma cultura
elitizada e outra mais popular gerou embates interessantes durante o
desenrolar das primeiras décadas deste século, como a criação da
Tentâmen. A fundação desse clube, na década de 20, foi uma clara reação
da elite de Rio Branco ao predomino dos cassinos e casas de prostituição
na oferta de lazer do que hoje seria chamada “a industria do
entretenimento”.
Neste contexto começaram, a
partir da década de 10, a formar-se em diversas cidades do Acre,
orquestras e bandas que tinham como objetivo animar os bailes, as
exibições de cinema mudo e as apresentações teatrais, sempre sob
inspiração dos padrões europeus.
Como se não
bastasse o poderio econômico e político das elites sobre os setores
menos favorecidos da sociedade, a história da musica no Acre registraria
ainda mais uma forma de dominação sutil, porém eficiente: a intervenção
do Estado na cultura popular através da criação de uma banda oficial.
Sena
Madureira, sede do Departamento do Alto Purus, havia saído na frente
criando uma Banda da Companhia Regional em 1914, mas essa iniciativa não
resultou duradoura. Nova investida foi efetivada em Rio Branco, em
1916, durante o governo do Prefeito do Departamento do Alto Acre Augusto
Monteiro que criou também uma “Banda da Companhia Regional”. O comando
dessa Banda foi entregue a Pedro de Vasconcelos Filho que possuía uma
“charanga” em Rio Branco e já havia passado por Xapuri, dois anos antes,
para organizar uma banda por lá também.
A
partir daí, a “Banda da Companhia Regional”, com atividade centrada em
Rio Branco, sofreria diversas modificações institucionais (ver
biografias de Zeca Torres I, Belarmino e Morais) porém não mais deixaria
de estar presente em todos os atos oficiais promovidos pelo Estado e em
grande parte das manifestações populares.
Não é
novidade que a presença da maquina oficial do Estado impôs-se nos mais
diversos níveis da vida no Acre. Isto deve-se, entre outros fatores, ao
sistema territorial mantido pelo governo federal que impossibilitava o
exercício político da maioria da sociedade acreana. A surpresa é
constatar que esse intervencionismo oficial ocorreu até mesmo na musica,
enquanto movimento coletivo.
O que pode
parecer exagero, à primeira vista, é uma constatação feita a partir dos
depoimentos de antigos moradores de Rio Branco e de Sena Madureira, bem
como dos ex-integrantes da Banda. Segundo esses depoimentos, a Banda
oficial dominou o movimento musical de Rio Branco até os anos 50,
enquanto que nos outros municípios onde não existia esse tipo de banda
institucionalizada, acabou ocorrendo uma musica mais variada e
espontânea.
Essa hegemonia musical da Banda
pode ser explicada pela caracterização de suas atividades como
instrumentos da política clientelista e da dominação social das elites
sobre a população em geral.
A Banda de Pedro de
Vasconcelos Filho estava presente em todas as atividades oficiais do
governo, nas solenidades, nas inaugurações, nas posses de políticos, nos
desfiles cívicos, mas atuava também nas retretas realizadas nas ruas e
praças e que serviam como pano de fundo para os namoros e para o lazer
popular.
Como a Banda era militar (leia-se à
serviço do Governo) os integrantes do poder e seus correligionários
podiam desfrutar dos melhores músicos da banda em seus saraus ou
alvoradas realizadas quase que diuturnamente. As famílias urbanas menos
abastadas, integrantes dos escalões inferiores da maquina publica, ainda
recebiam parte dessas benesses oficiais ao terem os músicos menos
destacados da banda escalados para tocarem em suas alvoradas. Quanto ao
povo em geral, esse devia se contentar mesmo só com os eventos públicos
patrocinados pelo governo.
Assim a Banda passou a
atender, ao longo dos anos, ao clientelismo característico do fazer
político acreano. Tinha dias, em que as solicitações de músicos para
serenatas e alvoradas eram tantas que faltavam músicos, apesar da Banda
ser dividida em cinco, seis ou mais conjuntos menores. Como a escala de
serviço vinha de cima, do comando, a composição dos conjuntos favorecia
sempre as principais famílias da cidade que só queriam os melhores
músicos, até porque os favores da Banda eram de graça. Mesmo a música
dos bailes realizados nos clubes, como a Tentâmen e o Rio Branco, corria
por conta dos conjuntos formados por integrantes da Banda e, por
conseguinte, do Estado.
É claro que essa
hegemonia da Banda oficial não se deu logo ao início de suas atividades,
mas foi sendo estabelecida entre as décadas de 10 e 40. A própria
composição de músicos da Banda variou muito ao longo do tempo e a
presença de indivíduos de origens mais simples no seu interior amenizava
muito essa situação de elitização musical.
Voltamos
aqui à existência de uma certa tensão entre duas tendências mais gerais
da musica em Rio Branco. Tratava-se de estabelecer um tênue equilíbrio
entre os diversos segmentos sociais reunidos na área urbana. Um bom
indicio disso é a dissimulada participação dos músicos da banda, nos
salões dos bares e cassinos noturnos, aproximando o oficial e o
marginal, o militar e o boêmio. Tanto que disseminou-se entre os músicos
da Banda a tradição de que um músico só podia se considerar como tal
depois de haver tocado no Papôco (Mela Coxa), Seis de Agosto (Bagunça do
Cicarelli) ou no Quinze (Rodovaldo). Nessas áreas de prostituição e
vida noturna agitada, o músico tinha que tocar das seis da tarde até as
quatro da manhã sem muito descanso e mantendo a animação, no mais das
vezes tocando sozinho.
Além disso, haviam também
os chamados grupos de “pau e corda”, que opondo-se a predominância dos
instrumentos de metal característicos das bandas, possuíam um repertório
bem mais popular, composto especialmente por ritmos brasileiros, ou por
estilos musicais que apesar da origem européia já haviam sido
disseminados de tal forma que possuíam caráter verdadeiramente popular
como a valsa, o tango, o fox, e ainda por ritmos mais recentes mas
igualmente populares como o samba e toda a sua variação rítmica e
melódica (samba, samba-canção, choro, etc.). Assim as camadas populares
exerciam seu potencial artístico atuando na boêmia, fabricando seus
próprios instrumentos, fazendo festas nas casas mais humildes das
cidades e dos seringais, que ainda mantinham-se praticamente com o mesmo
modo de vida, apesar da imensa crise que assolou a economia da borracha
a partir de meados da década de 10.
Os aspectos
até aqui abordados compõe um pequeno panorama da musica acreana
compreendida entre o final do século XIX e a década de 40, entretanto
para completa-lo dois pontos mais precisam ser ainda mencionados.
Primeiro
é necessário atentar para o relativo isolamento geográfico e de
comunicações do Acre com o restante do pais e entre as próprias cidades
acreanas. A inexistência de estradas que possibilitassem o contato
regular entre as cidades do Acre e com a capital do pais produziram um
isolamento musical que ao início só era superado pelos gramofones que
supriam a necessidade de musicas mais elaboradas ou mais “modernas”.
Quanto a isso é necessário lembrar, por exemplo, que a Casa Edison, que
já gravava discos com compositores populares desde 1902, possuía uma
filial em Belém. Ainda assim, esse era um contato bastante restrito, já
que os rios acreanos só apresentavam franca navegação durante metade do
ano, na estação das cheias, quando chegavam pelos vapores as novidades
musicais gravadas nos grossos e pesados discos de então.
Depois,
com o auge da economia gumífera, tornou-se comum a vinda de companhias
artísticas das praças de Belém e Manaus. Boa parte dessas companhias
eram estrangeiras e imprimiam geralmente um conteúdo elitizante em suas
apresentações.
Essas companhias estrangeiras
foram muito comuns nas décadas de 10 e 20, quando apresentavam-se nos
Cine-teatros - mais uma moda urbana dessas décadas - diminuindo
drasticamente sua presença nos anos 30, com o acirramento da crise da
borracha. Fica fácil de compreender, portanto, como o Acre sofreu, nesse
período, de uma grande dificuldade para acompanhar as influencias e
tendências musicais do restante do país.
O
segundo aspecto que ainda precisa ser destacado neste período diz
respeito à caracterização da musica religiosa no Acre. Para tanto
torna-se necessário considerar o papel desempenhado pelos muitos padres
que em suas desobrigas perambulavam por todo o interior acreano fazendo e
incentivando a prática da musica como possibilidade de congraçamento
dos fiéis. Além disso, não foram poucas as ocasiões em que as igrejas
localizadas nas cidades organizaram festas religiosas que também davam
vazão aos talentos e às composições musicais acreanas.
Dentro
da mesma linha de atuação, mas com resultados completamente distintos,
está a formação, a partir de meados da década de 20, dos primeiros
centros de Daime que sob o comando do Mestre Irineu, e mais tarde de
outros como Daniel Matos, deram início a uma nova faceta musical típica
do Acre: a musica sacra do Daime. A partir do contato de Irineu Serra
com os trabalhos espirituais desenvolvidos pelos irmãos Antônio e André
Costa em Brasiléia, os adeptos do Daime criaram movimentos
musicais-religiosos que mesclaram elementos indígenas, nordestinos e
católicos e desenvolveram uma forma característica de prece cantada que
tornou-se conhecida como hinário.
Essa vertente
musical, apesar de passar quase despercebida nos primeiros anos, deu
origem a uma grande variação nos rituais das diversas igrejas de Daime
que existem atualmente. Foram assim desenvolvidos bailados diversos,
repertórios musicais variados - que incluem ritmos como valsas, marchas e
nordestinos - e instrumentos tradicionais (violão, violino, teclados,
etc.) ao lado daqueles de origem claramente indígena como os maracás.
Estavam delineadas, então, as bases sobre as quais assentaria-se a evolução musical do Acre nos anos subsequentes.
No
início dos anos 40 o Acre possuía uma produção musical bastante
eclética. A Banda da Polícia Militar, como sempre havia feito, ainda
começava suas apresentações pelo Segundo Distrito de Rio Branco, bairro
mais antigo que concentrava o comércio e as residências das camadas mais
populares da sociedade. Só depois de percorrer as ruas 17 de Novembro,
24 de Janeiro e 6 de Agosto, a banda atravessava o rio Acre e completava
suas apresentações no Primeiro Distrito, sede do poder político e local
de moradia das classes dominantes. Durante essas retretas, realizadas
em frente ao Palácio do Governo na praça Eurico Dutra, tocava-se uma
seleta dos melhores estilos consagrados às bandas. Predominavam as
marchas, os dobrados, os foxes e as valsas, mas tocava-se também boleros
e sambas. Muitas dessas musicas já estavam sendo compostas pelos
próprios integrantes da Banda que estabeleceram o costume de homenagear
com suas novas composições os personagens ilustres da sociedade, os
políticos e suas esposas ou os comandantes da corporação à qual
pertencia a Banda. Getúlio Vargas, Guiomard Santos, Ten. Cel. Fontenele,
Dacy Fontenele, Cap. Francisco Sobreira, são os nomes de algumas das
musicas compostas por integrantes da Banda dessa época. Mas nem só de
oficialismos viviam os músicos e boa parte dos sambas e valsas compostos
foram dedicados às belas mulheres de então (como nas musicas “Nazira”,
“Cleide Elizabeth”, “Estelita”, “Ivone”, etc.).
Os
conjuntos de pau e corda, por sua vez, também continuavam fazendo suas
serenatas por toda a cidade. Houve mesmo uma época em que o sucesso
desse gênero de musica era tanto que “nas noites de lua ninguém dormia”
(Bararu). Nestas ocasiões, as serenatas e alvoradas causavam uma certa
confluência dos músicos de pau e corda e dos instrumentistas da Banda,
embora houvessem sempre aqueles músicos que preferiam mesmo tocar
sozinhos. Os conjuntos de pau e corda eram formados por instrumentos
variados - juntando dois violões, ou violões e zabumbas, ou sanfonas, ou
instrumentos de sopro - e tocavam não só nas serenatas mas em todas as
oportunidades que surgiam, tais como: em bailes populares, clubes e
bares.
O panorama musical só começou realmente a
modificar-se a partir de uma série de eventos que, rápida e
inesperadamente, alteraram completamente a vida acreana: a eclosão da
Segunda Guerra Mundial, a nova valorização da borracha e a avassaladora
onda de imigração nordestina da “Batalha da Borracha”. Fatores esses,
potencializados ainda mais por outros aspectos inerentes à nova
situação, e que causaram uma radical transformação na cultura e na
sociedade acreana e por consequência em sua música.
Sem
dúvida, uma das mais importantes transformações (no que diz respeito à
musica) desse período foi a superação do isolamento crônico em que vivia
o Acre. Desde meados da década de 30 que os aviões do Sindicat Kondor,
da Panair e depois do CAN vinham regularmente ao Acre, facilitando as
idas e vindas das pessoas e portanto das idéias. Porém, neste sentido,
os efeitos da aviação não podem ser comparados ao impacto causado pela
chegada dos primeiros rádioreceptores em diversas cidades do Acre (1940
em Sena Madureira e em 1942 em Rio Branco, por exemplo). O rádio podia
trazer, enfim, as novidades do mundo para o Acre, como a Grande Guerra, a
política populista de Getúlio Vargas e a musica que se praticava no
Brasil e em outras partes do mundo.
Para termos
uma imagem mais nítida dessa influencia imediata basta lembrarmos que o
primeiro radioreceptor de Rio Branco foi instalado no Pavilhão,
tradicional reduto dos poetas, músicos e intelectuais da cidade,
demonstrando que a presença do rádio foi desde seu inicio, atuou
coletivamente sobre a sociedade.
Somado a isso,
temos ainda a chegada de massivas levas de imigrantes nordestinos
durante o que convencionou-se chamar de “Batalha da Borracha”. Milhares
de homens e mulheres oriundos de todos os estados do norte e nordeste
que chegavam diariamente para trabalhar no Acre em nome do “esforço de
guerra”. Enquanto uma parte desses imigrantes era conduzida para o
trabalho nos seringais, outro tanto ficava pelas cidades trabalhando na
agricultura ou em serviços urbanos gerais. A década de 40 registraria
assim uma renovação das influencias nordestinas sobre a cultura acreana.
Influencias essas que já estavam bastante enfraquecidas pelas décadas
de misturas culturais ocorridas desde que os primeiros imigrantes
nordestinos por aqui aportaram no século XIX. Ainda mais que foi
exatamente nessa época que Luiz Gonzaga estourou nas rádios de todo o
pais como o “Rei do Baião”. Assim o gosto pelos gêneros musicais
marcadamente nordestinos conheceu acentuado crescimento com a
proliferação dos forrós tanto nos seringais, quanto nas cidades.
Sintetizando
e completando todas as modificações já citadas aparece como fator
extremamente importante a criação da Rádio Difusora Acreana em 1944.
Rapidamente o Acre deixava de ser simples consumidor das rádios
nacionais e estrangeiras para tornar-se produtor regional de uma
programação jornalística, musical, artística e de serviços. Mais
importante ainda, a “ZYD-9 - A Voz das Selvas” conseguiu, finalmente,
operar uma relativa integração do Acre, ao ter suas ondas captadas
também nos seringais e cidades do interior. Por isso, além do acesso
rápido que o rádio possibilitava ao que estava-se produzindo em termos
musicais pelo pais, a presença de uma emissora na região significava que
os músicos acreanos passaram a ter um novo campo de trabalho e de
veiculação de suas composições, certamente incentivando sua modernização
e dinamização.
Apesar das mudanças porque
passava a musica no Acre, a Banda da Guarda Territorial (como passou a
ser denominada a partir de 1945) continuava suas atividades, atendendo
aos interesses da elite, e ainda dominando o cenário musical de Rio
Branco. Aliás, esta cidade, já há tantos anos capital do Território
Federal do Acre, acabava por ser um ponto de forte atração para músicos
de diversas cidades e seringais do interior acreano que para lá afluíam
atrás de melhores oportunidades de viver de sua arte. Tanto é assim que a
composição da Banda nessa época revela a presença de músicos e
compositores vindos de diversos municípios acreanos (ver Zeca Torres I,
por exemplo).
Estavam nesse pé os
acontecimentos quando Garibaldi Brasil, integrante do governo de Amilcar
Dutra de Menezes, no início da década de 50, foi até Belém trazer novos
músicos que dessem um maior impulso à musica acreana. Logo chegavam ao
Acre Raimundo Neves acompanhado por Sandoval do Anjos, Elias Ribeiro
Alves e Mário do Carmo Pires. Eles integravam um conjunto de jazz de
Belém e deveriam formar a Jazz-orquestra da Rádio Difusora Acreana para
dinamizar sua programação musical. Porém não demorou muito para que o
comando da Banda da Guarda Territorial, que era do Mestre Holdernes,
fosse passado para o Maestro Neves (como viria a ser chamado mais tarde)
que promoveu uma certa renovação do repertório da Banda com foxes,
rumbas, mambos e musicas brasileiras como a “Aquarela do Brasil”,
“Carinhoso”, etc.
Havia, assim, no Acre dos anos
50 uma nova realidade musical. Os carnavais, que sempre haviam tido
presença importante na cultura acreana, ganhavam cada vez mais as ruas
com a multiplicação dos blocos de sujo que nasciam em bairros como a
Cadeia Velha, o Quinze e a Capoeira e assumiam a cidade durante a “Quina
Momesca”. Nos assaltos carnavalescos os músicos, acompanhados por
grande numero de foliões, à semelhança do que era feito nas alvoradas,
invadiam as residências durante todo o mês que antecedia o carnaval. Nos
clubes, especialmente no Rio Branco e na Tentâmen, também brincava-se
animadamente ao som dos músicos da Banda transformados
circunstancialmente em músicos carnavalescos.
As
novidades que vinham através do rádio, com seus ídolos de popularidade
crescente, traziam um novo elemento fundamental nas mudanças porque
passava o cenário musical brasileiro e agora também o acreano: os
programas de auditório e de calouros. Este tipo de programa
característico da rádio brasileira chegou rapidamente ao Acre. Surgiram
assim os programas de calouros da Radio Difusora e um pouco depois os da
Rádio Andirá, ambos em Rio Branco. Mas as cidades do interior não
ficaram para trás e criaram seus próprios programas de calouros nos
colégios, clubes e rádios locais (ver biografias de Geraldo Leite e
Franco Silva).
Esses programas marcaram época
por sua imensa popularidade. Os programas de calouros eram semanais e -
fossem os promovidos pela Rádio Difusora na Tentâmen ou em seu próprio
auditório, fossem aqueles realizados pela Andirá, ao ar livre - sempre
eram presenciados por grande numero de animados espectadores que
motivavam o surgimento de novos talentos e valores artísticos. Zé Lopes,
Índio do Brasil e Natal de Brito eram alguns dos que apresentavam os
concursos para músicos, cantores, locutores e atores, com pequenas
premiações para os vencedores e a colaboração de alguns dos mais
importantes músicos da Banda como jurados (Maestro Neves, Sandoval,
etc.). Isso aumentou ainda mais a afluência para Rio Branco de músicos e
artistas do interior que vinham se apresentar nos programas de calouros
da Capital. No dizer de Crescêncio, “foram pelo menos 10 anos de
extraordinária atividade da rádio, que durou pelo menos até quando o
Acre foi transformado em Estado, em 1962”.
O
movimento de renovação proporcionado pelos programas de calouros, tornou
a Banda da Guarda Territorial pequena para abrigar o novo contingente
de músicos, tanto por seus aspectos quantitativos, quanto pelas
características qualitativas desse movimento musical. É verdade que a
Banda procurava adaptar-se aos novos tempos, especializando diversos de
seus segmentos de acordo com gêneros musicais distintos. Ou seja, dentro
da Banda da Guarda, existia um grupo menor especializado em choros,
outro em valsas e assim por diante. Por outro lado, esses mesmos músicos
da banda possuíam atividades musicais diversas, especialmente aquelas
destinadas ao ensino da musica e à formação de conjuntos para tocar um
repertório não desenvolvido pela Banda. Exemplo disso foi Zeca Torres
grande que criou ainda no início da década de 50, dois conjuntos de jazz
chamados simplesmente Jazz-A e Jazz-B.
Porém,
por mais que o repertório e a técnica instrumental da Banda da Guarda
Territorial fossem continuamente aprimorados, sua função social ainda
permanecia a mesma: a ingerência do poder instituído sobre a cultura de
massas. Isso limitava fortemente a diversificação das atividades da
Banda e tornava-a pouco atraente para muitos dos novos músicos. Para
tanto, colaborava ainda mais o contexto musical brasileiro e mundial em
franca ebulição na passagem dos anos 50 para os 60. A nova geração de
músicos acreanos queria tocar o samba, a musica popular e as ultimas
novidades: a bossa-nova e o rock’n roll, sem ter que restringir-se
somente às valsas, marchas e dobrados.
Nesse
contexto começaram a ser formados novos conjuntos musicais melhor
estruturados, superando a prática muito espontânea mas pouco organizada
dos conjuntos de pau e corda. Eram os conjuntos “modernos” ou
“eletrônicos”, como foram classificados por Sandoval do Anjos em sua
“História da Musica”, por incorporar instrumentos elétricos como
guitarras e baixos.
O “Bossa-ritmo” foi o
primeiro desses conjuntos que, formado em meados da década de 60, tinha a
preocupação central de renovar a musica que tocava-se nos clubes,
através da incorporação do movimento bossanovista, dos Beatles e da
Jovem Guarda (ver biografia do Crescêncio). Até mesmo alguns integrantes
da “Furiosa” (como também era chamada a Banda da Guarda Territorial)
adaptaram-se à nova situação, como Elias Ribeiro, o Mestre Elias, que
formou com seus filhos o “Quinteto de Ouro”, que possuía um repertório
de sambas e chorinhos. Aliás o caráter familiar dos conjuntos “modernos”
foi uma característica marcante do movimento musical desse período. O
Bossa-ritmo, que obteve um grande sucesso nos bailes promovidos nos
salões do Rio Branco Futebol Clube, foi desfeito devido à saída dos
irmãos Mansour para a formação do conjunto “Os Bárbaros”, que a partir
de 1966 animava as noites do Juventus. Logo a seguir surgiu ainda outro
conjunto de grande importância na época: eram “Os Mugs”.
O
novo movimento musical de Rio Branco passou então a ser dominado pelos
“Os Bárbaros” e “Os Mugs” que dando vazão às necessidades musicais dos
filhos da classe média urbana que os comparavam aos “Beatles” e aos
“Roling Stones” e frequentavam os bailes do Juventus e do Rio Branco,
bem como os jogos de futebol entre os mesmos dois clubes. Depois disso a
Banda da Guarda nunca mais recuperaria a mesma pujança social que
tivera outrora, embora continuasse a existir e a atuar em Rio Branco e
no interior.
A segunda metade da década de 60,
portanto, possibilitou a reunião de todos os elementos necessários para
promover uma verdadeira revolução musical no Acre. Mais do que nunca a
ligação do Acre com o Rio de Janeiro viu-se fortalecida. Foi Chico Pop
quem nos mostrou a incrível rapidez com que as coisas aconteciam no Rio
de Janeiro e já ficava-se sabendo no Acre. A Bossa Nova de Vinicius de
Morais, Tom Jobim e Nara Leão já havia sido então firmemente incorporada
nas apresentações de João Donato na Tentâmen, onde ele tinha a ousadia
de tocar arranjos complexos e jazzisticos no acordeon, revelando todo o
talento que mais tarde garantiriam para ele um papel de destaque no
panorama musical brasileiro e internacional. Os programas de calouros
das rádios continuavam sendo irradiados ao vivo, nas manhãs de domingo,
para todo o Acre, enquanto que “Os Bárbaros” e “Os Mugs” davam maior
vitalidade aos bailes do clubes através da radical modificação do
repertório tocado nessas ocasiões. Esses fatores, impulsionados pelas
novas tendências musicais surgidas no Brasil e no mundo e divulgadas
através dos famosos festivais da TV Excelsior, Record e Tupi, conduziam
os jovens músicos por caminhos nunca antes trilhados: a jovem guarda, a
musica de protesto provocada pelo golpe militar de 64 e o tropicalismo.
A
consequência mais imediata e evidente de toda essa movimentação foi a
realização, em 1969, do primeiro festival de Rio Branco. Este antológico
festival, organizado pelo jornalista Elzo Rodrigues, realizou-se no
Cine Rio Branco e foi disputado por nada menos que 162 musicas,
demonstrando o tamanho de sua repercussão. Memorável, inclusive por
isso, o festival acabou em uma grande confusão provocada pela
controvérsia que cercou a musica vencedora (ver biografia de Crescêncio
Santana), já que a preferida do publico (leia-se a moçada do Juventus)
era a musica de Chico Pop e seu irmão, defendida por uma parte do
conjunto “Os Bárbaros”. Essa musica chamada “Do Mundo vou falar” era
claramente inspirada pelo sucesso da musica de protesto de Geraldo
Vandré “Pra não dizer que não falei das flores” e possuía muito mais
apelo à juventude do que o samba-canção de Crescêncio (gravado neste
trabalho). Mas se até os festivais do Rio de Janeiro acabavam em
confusão e controvérsia, porque teria de ser diferente no Acre ?
Apesar
da enorme repercussão desse primeiro festival, durante a década de 70
não houveram outros festivais de maior expressão. A exceção foi o
Festival do CESEME de 1976, que por falta de continuidade não trouxe
maiores consequências. Por outro lado, a força com que as informações e
as novas tendências afluíam para o Acre, trouxeram a moda das
discotecas, das danças que deixavam “o corpo lindo, leve e solto” e
marcaram um refluxo no crescimento da MPB. A juventude passou então a
estar mais interessada nos bailes sob luz negra, no John Travolta, no
“Dancing Days” e na musica do “Disco”.
Ainda
assim, nos anos 70, a produção musical acreana manteve-se através da
atividade dos conjuntos “Os Bárbaros”, “Os Mugs” e outros que foram
sendo criados, como “Os Signos”. Esses conjuntos continuavam
apresentando-se nos clubes Rio Branco, Juventus e Atlético Acreano; bem
como, em cidades do interior acreano e até fora do Acre, em cidades como
Porto Velho, Manaus e Cuiabá. É claro que nesse momento ocorreu uma
certa modificação no repertório, os conjuntos passaram a enfatizar
principalmente as musicas da “Jovem Guarda”, do “Eduardo Araújo” e do
“Renato e seus Blues Caps”. Aliás, “Os Bárbaros” ainda chegou a gravar
um compacto em Manaus, no que foi logo seguidos pelo “Os Mugs”, mantendo
acesa a disputa que existia entre os dois grupos.
Portanto,
a década de 70 foi marcada por uma certa continuidade de muitos dos
eventos que já vinham acontecendo. Exemplo disso eram os programas de
auditório do Cine Rio Branco que mantinham um bom nível de popularidade e
continuavam atraindo artistas iniciantes do interior do Acre.
Mas,
nos anos 70, aconteceram algumas novidades também. Uma delas foi o
surgimento das Escolas de Samba em Rio Branco. Motivados pela
importância crescente dos desfiles das Escolas de Samba do Rio de
Janeiro, alguns dos blocos carnavalescos formados nos bairros da cidade
tornaram-se Escolas de Samba. Tanto que já em 1972 começaram a ocorrer
acirradas disputas entre a Escola de Samba Unidos da Cadeia Velha, sob o
comando de João Aguiar, que tinha chegado a pouco do Rio, e a Escola de
Samba Unidos do Bairro Quinze, comandada pelo baiano-carioca Santinho.
As disputas, cujo palco principal era a Avenida Getúlio Vargas, durante
as festas de Momo, estendiam-se às rádios que executavam as músicas de
cada uma das escolas e movimentavam o panorama cultural de Rio Branco.
Outra
novidade foi a chegada, ainda que um tanto tardia, da televisão ao
Acre. Isso aconteceu em 1974, ano de Copa do Mundo, promovendo uma ainda
maior integração cultural do Acre ao restante do país e incorporando
atividades consagradas regionalmente como os programas de auditório que
rapidamente passaram a acontecer também na televisão. Porém, lembram
alguns saudosistas de plantão, que a chegada da televisão também
provocou uma certa deterioração no antigo costume das famílias de se
reunirem nas calçadas, no fim da tarde, para conversar e comentar as
ultimas novidades. O antigo modo de vida acreano parecia então
definitivamente superado.
Um novo e fundamental
impulso na musica acreana só voltaria a ocorrer no início dos anos 80
com a retomada dos festivais. Mais uma vez a realização dos festivais
acreanos deve ser atribuída às influencias que vinham do Rio de janeiro,
ou de outras partes do Brasil, apesar de apresentar diversos aspectos
que os configuram como fenômeno regional com características próprias.
Não podemos descartar também influencias do Festival de Woodstok e do
movimento estudantil que procurava meios para veicular seus protestos
contra o Regime Militar então vigente.
Não
por coincidência, o primeiro Festival Acreano de Musica Popular, ou
FAMP como ficou amplamente conhecido a partir de então, ocorreu por
iniciativa de pessoas ligadas à UFAC, em 1980. Este primeiro FAMP
aconteceu na sede do Vasco da Gama e teve enorme repercussão, inclusive
pela apresentação especial realizada por Sérgio Souto que apesar de
acreano, estava trabalhando sua carreira no Rio de Janeiro. Essa
apresentação possuía uma dupla importância, primeiro porque demonstrava a
possibilidade dos músicos acreanos conquistarem seus espaços na musica
popular brasileira e depois porque adiantava-se de certa forma aos
festivais da Shell, que tiveram enorme repercussão nacional, onde Sérgio
Souto cantaria a mesma musica que já havia apresentado
não-competitivamente no primeiro FAMP: “Minha Aldeia”.
Nos
anos seguintes ocorreram outros FAMPs, que contou em 1997 a sua décima
edição. Ou seja, a realização dos FAMPs não aconteceu de forma continua:
ocorreram em 1980 e 1981, parou em 1982, voltou em 83, dando uma nova
parada por questões financeiras até 1985 e assim por diante até os dias
de hoje.
Antes mesmo de falar das consequências
que os FAMPs tiveram sobre a musica acreana é preciso lembrar que a
partir de 1983 esse movimento foi engrossado pela realização dos
Festivais do Amapá, tornando a década de 80, fundamental para a atual
identidade da musica acreana.
Impossível, embora
necessário, seria nos dedicarmos aqui a percorrer a história de cada um
dos FAMPs e dos Festivais do Amapá. Só assim, talvez, pudéssemos
demonstrar um pouco da verdadeira revolução cultural que esses festivais
representaram para a cultura acreana. Como teremos que nos contentar
com sua caracterização genérica, mostra-se preciso, antes de mais nada,
lembrarmos do momento sócio-econômico pelo qual passava o Acre.
Os
anos 70 haviam sido extremamente cruéis para a sociedade acreana. A
implementação de um novo modelo econômico para no Acre, com a
substituição dos seringais pelos grandes latifúndios pecuaristas, trouxe
radicais transformações para quase todos os setores da sociedade,
especialmente para os menos favorecidos. Essa história é bem conhecida e
não precisamos aprofunda-la demasiadamente. Basta lembrar do fechamento
dos seringais, da chegada dos “paulistas” ao Acre, da implantação das
fazendas de gado, da expulsão de milhares de seringueiros de suas
colocações, do inchaço das cidades com a formação de inúmeros bairros
periféricos e miseráveis, do acirramento das relações entre seringueiros
e latifundiários e o consequente enfrentamento dai advindo, dos poucos
resultados econômicos obtidos, para realçar o conturbado contexto vivido
no Acre então.
Assim, os anos 80 encontraram um
Acre que tentava se reestruturar. Um contexto social onde mostrava-se
necessário rever os modelos estranhos e prejudiciais à região, onde
tornava-se mais que importante, essencial, estabelecer discussões
ambientais, políticas, econômicas e culturais. Nada podia ser melhor,
diante de tal situação, para dar voz à sociedade do que os festivais,
onde as opiniões e as necessidades da sociedade podiam ser gritadas,
tanto quanto cantadas.
Com efeito, foi nos
festivais que toda uma nova geração de músicos acreanos despontou no
cenário cultural acreano. Àqueles músicos que desde os anos 60 e 70
vinham produzindo e divulgando a musica no Acre, como Crescêncio
Santana, Da Costa, os irmãos Gallo, os irmãos Mansour, Geraldo Leite,
juntaram-se inúmeros jovens que produziam, não só musica, mas poesia,
informação, idéias, comportamentos e opiniões. Nomes como Pia Vila,
Felipe Jardim, Damião Hamilton, Sérgio Taboada, Antônio Manoel, Narciso
Augusto, Beto Brasiliense, João Veras, Maués, Jorge Carlos, Bacurau,
Tião Natureza, e tantos outros que poderia resultar injusto tentar
enumera-los aqui.
Mais
importante ainda que a quantidade de valores surgidos nessa época foi a
diversidade das linguagens e temáticas utilizadas a partir de então.
Nos festivais surgiram musicas de protesto contra a degradação
ambiental, antes mesmo da ecologia tornar-se ponto de interesse mundial;
musicas que cantavam o modo de vida urbana dos filhos da burguesia e
dos marginalizados pela sociedade; musicas que contavam do cada vez mais
duro cotidiano seringueiro, entre a melancolia da extinção e a
esperança de um improvável futuro; fizeram-se musicas que denunciavam,
ainda que inocuamente, a desfaçatez da política e do autoritarismo;
musicas, enfim, que recuperaram para o imaginário social o encantamento
da rainha da Floresta e dos esquecidos povos indígenas do Acre.
O
próprio espirito do Festival do Amapá, que não era competitivo, revela
um espirito reinante, segundo o qual o que interessava realmente era o
encontro, a troca, a celebração, a consciência e, se possível, as
mudanças. Entraram assim, para o repertório acreano, as influencias do
Brock, da MPB e, principalmente, começou-se a elaborar composições
musicalmente inovadoras através da reunião dos hinários daimistas com
temáticas político-ecológica e uma poesia seringueira.
Não
podemos deixar de mencionar aqui outro importante elemento para o
aprimoramento musical acreano, que foi a realização do Projeto
Pixinguinha trazendo para o Acre, durante a década de 80, diversos
artistas com projeção nacional que incentivaram ainda mais o
desenvolvimento dos músicos acreanos. Data dessa época também, o
movimento inverso, quando uma caravana de músicos acreanos apresentou-se
no Rio de Janeiro, em um antológico show realizado no Circo Voador e
que reuniu boa parte da colônia acreana residente no Rio.
Tempos
férteis, os FAMPs e Amapás dos oitenta marcaram a existência de muitos
dos respeitáveis (quase) senhores que hoje, já trintões ou quarentões,
tentam ocupar os espaços necessários para modificar e/ou melhorar o modo
de vida acreano, em uma possível síntese do que já foi e do que ainda
é.
Na virada para a atual década, o movimento
gerado pelos festivais já havia esfriado um bocado, apesar de sua
continuidade até os dias de hoje. Colaborou decisivamente para isso as
manobras de apropriação que determinados segmentos políticos efetivaram
sobre a organização e a realização dos festivais, assim como a crônica
falta de apoio oficial e privado às iniciativas espontâneas,
independentes e por isso mesmo legitimas, que surgiram ao longo do
tempo.
Mas a semente havia sido lançada e, a
partir das bases criadas nos festivais, a musica acreana pôde
manifestar-se mais intensamente nos palcos dos bares de Rio Branco.
Muitos dos artistas de então profissionalizaram-se e passaram a viver da
musica, enquanto outros tantos foram desempenhar as mais diversas
atividades, sem largar totalmente a música. Surgia assim a chamada
“Cultura de Botequim”, como foi denominado por Ademar Galvão, o
movimento musical centrado nos bares noturnos da cidade e que permanecem
sendo até hoje, o núcleo da produção musical acreana. Nesse movimento
mais recente da Cultura de Botequim” muitos músicos recém chegados ao
Acre, foram assimilados e passaram a também militar na noite acreana, em
uma fértil simbiose de influencias e estilos.
Até
mesmo os músicos da geração que havia feito a passagem dos tempos da
banda para o dos conjuntos modernos, participaram desse novo movimento
noturno-cultural. Foi quando um grupo de poetas, intelectuais, músicos e
boêmios resolveu promover reuniões semanais, sempre às terças-feiras
para a marcar uma posição diferenciada, onde pudessem extravasar sua
necessidade de musica, poesia e arte. Era o “Grupo da Madrugada”,
composto, entre outros, por: Crescêncio Santana, Fernando Gallo, Da
Costa, Elzo Rodrigues, Mauro Modesto, Hugo Conde, Eremildon, etc. O
Grupo da Madrugada reuniu-se em diversos bares de Rio Branco.
Inicialmente no Casarão, depois no Carlinhos Alvorada, no Pelé e
finalmente no Kaxinauá.
Do começo dos anos 90
para cá, outras mudanças ocorreram, como a invasão dos teclados e a
massificação de certos ritmos e estilos de interesse das grandes
gravadoras do país - como o sertanejo e o pagode - em detrimento da
imensa diversidade musical que caracteriza o Brasil. Apesar disso a
produção regional de musica pouco foi alterada, mantendo a diversidade
temática e estilística proposta e implementada na grande década dos
festivais e mantida depois nos bares da vida e nos eventos que
esporadicamente continuam acontecendo em Rio Branco, tais como: o
“Concerto ao Vento”, o “FAMP”, o “Projeto Boca da Noite”, o “Projeto
Pixinguinha”, o “Festival do Amapá”, o BRock, etc. Mas essas são coisas
que ainda estão acontecendo, pertencendo, portanto, à história que ainda
será escrita um dia.
Texto escrito por
Marcos Vinicius Neves a partir das pesquisas de Jorge Nazaré, Danilo de
S'Acre e Silvio Margarido para o Projeto Registro Musical.
História da música no Acre
Reviewed by Tiago Gomes
on
07:26
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